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Boa noite
companheiro de solidão. Não tenho sono, estou com frio e
encontro-me só. Comigo não há cão, gato ou canário com quem
possa desabafar. Coloquei uma camisola sobre os ombros e uma manta
sobre os joelhos. Calcei outras peúgas sobre as que calçado tinha.
Está muito frio, não consigo dormir e preciso falar.
Não
vou dizer que dia é hoje, para quê, qual é a importância de uma
data... em principio, à parte cronistas e historiadores, eruditos em
busca de certezas sobre os livros que gostariam de ver editados,
nós... as pesssoas simples, que desfolhamos um livro para passar o
tempo, que nos importa se ele foi escrito a dez de Janeiro ou vinte e
três de Maio? O importante é gostar do livro. Eu gosto de escrever
e penso que à parte lêr não sei fazer mais nada do que isso mesmo,
escrever. Não
vamos aqui dialogar se o sei fazer bem ou não, na verdade nós...
estamo-nos marimbando para tal questão. Vamos deixar esse ridículo
problema, se acaso ele existe, aos coerentes, bem ou maldizentes críticos; na
realidade nós... estamos muito longe dessas pequenas mesquinhices
literárias. Aqui o importante é que eu gosto de escrever e, com
certeza, o leitor até gosta de lêr. Contudo, penso que isso também
não é relevante para o caso que me trouxe aqui.
Durante o
tempo em que estive na guerra em Moçambique, fui ferido numa
emboscada. Esse ataque à coluna militar em que eu seguia, era
conduzido pelos gloriosos libertadores daquela imensa, rica, e
histórica terra. Os guerrilheiros tentavam eliminar o invasor. Para
eles, o invasor, eram aqueles portugueses de merda, que já andavam
(e por lá continuavam) a roubar, violar e matar, havia mais de
quinhentos anos! E ninguém queria saber disso, ninguém ligava
nenhuma àquela pouca vergonha...
Então,
nessa tal emboscada contra os soldados portugueses, que aconteceu na
picada entre Mueda e Mocimboa do Rovuma a 18 de Janeiro de 1968, uma
granada ofensiva veio do meio do mato, lançada pelos libertadores do
povo e do território do grande e heróico Gungunhana que, segundo
parece, só era herói porque tinha a ajuda económica dos nossos
“amigos” ingleses... e, para minha desgraça, a tal granada veio
cair sobre a parte interior da minha perna direita, desfazendo o lado
de cima da bota de cabedal que voou em fanicos, e aproveitou o
instante para levar com ele (o cabedal é que levou com ele, claro!)
quatro centímetros de pele, carne e partes dos músculos, veias, ou
qualquer merda do género que antes da granada explodir me pertencia.
Por esse tempo, usava um
comprido lenço de seda preto, que servia de cachecól - e para outras
coisas que necessárias fosse - cachené que tinha recebido do meu
capitão “Comando” antes de levar dele um grande pontapé no cú
e me ter enviado para aquela Companhia de Cavalaria. Então, com esse
providencial lenço, fiz um bem e apertado nó na perna para segurar
o sangue, operação essa a que a “maralha” costumava chamar
garrote. Digo isto para quem não saiba pois, nunca se sabe se... O
alferes Jáquité, que era um oficial do exército português e era
também um preto da Guiné-Bissau que, por acaso... também era um
território explorado, roubado... já disse isso antes. Ora, esse tal
oficial, que era o tipo mais porreiro do mundo e que adorava andar
borracho sempre que lhe era possível, ( por esse tempo eu não
andava borracho, mas agora desforro-me...) como ia dizendo, esse
preto era um traidor que lutava ao meu lado, contra os seus heróicos
irmãos de Moçambique e, nesse ataque, teve uma... que raio de
palavra devo usar aqui?... Bom, teve uma espécie de “remorso
instantâneo" que o obrigou a meter a cornadura e carapinha ( não
estou a dizer mal dele porque ele não era casado e, como já disse,
ele era um dos tipos mais bacanas que algum dia conheci ) na berma da
picada e ficou ali estarrecido, com receio de matar os irmãozinhos,
que não eram da Guiné-Bissau mas eram irmãos na língua oficial
dos territórios onde tinham nascido e na bronzeada cor da pele. Que
vocês acreditem ou não no que estou práqui a dizer, não me
preocupa. A verdade é que eu não sentia dor nenhuma na perna e,
com dois horrorosos gritos de Comando, conduzi o pelotão chefiado
pelo corajoso Jaquité, terminando, ao fim de uns tiritos, por pôr
em debandada, os heróicos defensores dos russos; chineses;
americanos; franceses... alto! Acho que não era isto que queria
dizer. Mas, já agora!... fica assim.
Vocês sabiam
que o genial senhor doutor Almeida Santos, um dos três ministros...
que assinou o famoso acordo de Lusaka com o Samora, indivíduo que anda lá por
Lisboa há mais de trinta anos a viver à custa da política,
escreveu em Lourenço Marques um livrinho, logo a seguir ao 25 de
Abril, que se intitulava “JÁ AGORA!” Não sabiam? Então ficam
a saber mais qualquer coisinha...
A
coluna tinha saido de Mueda para Mocímboa do Rovuma. Nesse ataque
tivemos feridos. Recordo que ia sentado ao lado do condutor da
“Berliet”, condutor que tentava conduzir os feridos o mais
depressa possível. Recordo que nas minhas costas se situava o
atirador da metralhadora pesada e que, enquanto seguiamos para o
acampamento, um leopardo de uma beleza espectacular, passou em frente
à viatura em que eu seguia e que, em passos ágeis, nos olhou a
todos, (todos, foi isso que escrevi) com ar de desprezo? Bom, isso
também não importa muito, quem era aquele merdeiro, dito leopardo,
para desprezar com aquele ar de superioridade os grandes defensores
do Império Português?... Quando chegamos à base, no hospital de
campanha, o médico, que me conhecia, veio a correr tratar de mim.
Eu, como fui sempre uma grande besta na vida, disse: "Vai
tratar ali do algarvio, ele levou uma rajada!” O meu amigo doutor,
que era mesmo meu amigo, vá lá saber-se porquê, fazendo de conta
que não me ouviu, continuou a tratar de mim. Então,
mais uma vez, tive que usar a tal voz de Comando que faz tremer
terroristas, homens e até leopardos... e só desse modo é que o
doutor foi a correr tratar do meu pobre camarada de cavalaria Pobre
cavalaria!... ( porque se teria suicidado o grande Comandante
Mousinho de Albuquerque?)
Quando, já
dentro do helicóptero, seguia para o hospital de Mueda, como os
feridos eram muitos, não havia espaço para nos mexermos. É
verdade que a viagem era curta, todavia, durante o tempo em que ela
durou, passou-se algo que gostaria de vos contar: no mesmo
helicóptero, ia outro ferido. Um preto de Moçambique, (mais um
traidor) um latagão calmo e de valor, sempre bem disposto e dos
poucos que não tinha mêdo de alinhar comigo nas refregas do mato,
que tinha sido ferido no abdómen e a compressa que o médico lhe
colocara no ferimento, não conseguia reter convenientemente o sangue
que dele vertia. Então, esse sangue pegajoso e frio, do meu amigo,
que comigo defendia a Bandeira das Quinas, começou a cair sobre o
meu sobrolho: ping, ping, ping, e isso principiou a enervar-me.
Contudo, instantes depois, pensei no tal latagão, enorme, quase dois
metros de altura, na imagem bem viva na minha memória do seu
sorriso, quando em Mueda, antes de iniciar a viagem para o Rovuma,
bebia em minha companhia uma boa e fresca cerveja 2M, e já não me
importei que o seu sangue, igualzinho ao meu, bem português,
tombasse sobre mim.
Afinal
ele era meu amigo. Na realidade todos eram meus amigos. Eu era o
“Vampiro”. O “Vampiro” dos Comandos. E decerto o sangue até
vinha a calhar pois que ultimamente andava com um bocado de
fraqueza... Se eu abrisse os lábios, como era “vampiro”, estão
a topar... podia aproveitar para retemperar forças perdidas...
Merda! Já estou a fugir
para o romanesco e sentimental. Isto não é um romance. É
simplesmente mais um livreco de recordações do tempo em que eu era
rico. Rico de saúde, claro, e não era assim deste modo que o tinha
imaginado e gostaria de escrever... Bom, adiante. Como não vejo
maneira de modificar o texto e o engenho neste momento não é
muito...
O tal preto,
latagão, com quase dois metros de altura e 120 kilos de peso, estava
a chorar sob as tendas do hospital de campanha! O meu irmão de
Moçambique que tinha lutado e sofrido ao meu lado, tinha sido
ferido! Estava a chorar com medo de morrer e eu não gostei de ver
isso. Aquele carão preto, mas simpático e sempre bem disposto, não
ficava bem com as lágrimas. Eu sei que ele era um valente. Eu sei
que ele era português e adorava o Benfica! Pronto está dito! Eu
tenho mais tendência para o Porto porque os meus meninos nasceram
lá, mas ele gostava mesmo era de Portugal e do Benfica. Essa é que
é a verdade e o resto são tretas!
Chegámos
à base de Mueda e fomos transportados para o hospital de campanha.
No momento em que estavam a tirar-me resíduos de carne da perna,
apareceu o meu antigo comandante dos Comandos ( penso que a minha
antiga Companhia estava nessa zona para entrar numa grande operação
( Nó Gordio?) ao lado de mais dois oficiais dos Comandos. Como o
médico estava a tirar-me as partículas de carne sem anestesia eu tinha
que respirar fundo - nos momentos em que ele, com a pinça, praticava
a operação - para logo a seguir expulsar o ar acumulado... e a dor
horrível que tal me causava. Então, o comandante “Sórraiva”
para me dar coragem, (que graças à minha natureza era coisa que não
me faltava) colocou-se por detrás de mim e, agarrando os meus ombros
dizia: “Merda Vampiro! Vês?
Porque raio quiseste tu sair da minha companhia?” E eu, baixinho,
dizia: vai mas é tu à merda! Saí da tua companhia e da tua equipa
pessoal porque tu quiseste!
Durante
o trajecto de Nampula para o hospital militar 125, dentro do
"Nordatlas" ,vi que só tinha uma bota, a outra tinha ficado em Mueda.
Pensei: “E agora, como é que
vou andar?”
Eu
sei que o pensamento que me veio à cabeça, naquele momento, foi
estúpido. Com bota ou sem botas eu não andaria a pé tão cedo,
todavia, foi isso mesmo que pensei. Depois lembrei-me que o Saraiva,
o tal comandante dos Comandos que me deu o pontapé no traseiro,
enquanto me segurava os ombros e me dizia para respirar fundo, no
momento em que o enfermeiro me tirava as tais partículas de carne da
perna ensanguentada, me tinha colocado qualquer coisa no bolso da
camisa do camuflado. Fui ver o que tinha sido. O
“Sórraiva”, imaginem, tinha metido lá quinhentos escudos! É
verdade pá, quinhentos escudos e, nessa altura, o meu salário na
vida militar era de novecentos escudos por mês!... Não
quero ser vaidoso! Mas a verdade é a verdade. Toda a gente gostava
do “Vampiro”. Até os oficiais! Outros tempos...
Do
mau momento que o meu amigo e alferes Jaquité viveu durante a
emboscada, nenhum soldado deu por isso, a não ser eu que ia a seu
lado. O meu amigo superior falou com o Comandante da Companhia e
disse-lhe que a minha reacção instintiva em combate naquela
emboscada salvara muitas vidas. Talvez todo o pelotão. Que, se não
fosse a minha reação imediata, podia ser a catástrofe e que por
isso gostaria que eu fosse por ele, Comandante, louvado com a medalha
de guerra... O capitão Garcia perguntou: “Mas
esse gajo não é aquele tipo... o “Vampiro” dos Comandos que
está aqui de castigo?” E o Jaquité, vendo que o grande chefe me
conhecia, respondeu entusiasmado: “Sim,
sim! é esso mesmo! é um bravo e...” Nesse instante o Garcia
desinteressado da conversa disse: “Esse tal de “Vampiro” é
Comando! E como Comando, não fez mais do que a sua obrigação! É
para isso que eles são treinados!” E assim dizendo virou costas ao
atónito Jaquité que, a partir daí, ainda bebia mais “wisky”
que antes...
Tempos
depois, no Sul da Província, já em Mutarara, com uma grande
carraspana nos cornos, o alferes Jaquité olhava para mim de olhar
nublado e dizia: “O teu lugar
não é à beira dos soldados! O teu verdadeiro lugar é como
Comandante da Companhia! E eu sorria dessas coisas. Sorria e não
compreendia muito bem o que é que ele pretendia dizer; por esse
tempo. Agora compreendo, mas já é tarde.
Quando estava
nos Comandos tinha um camarada inseparável que era apelidado de
“Pirata”. Nos comandos todos tinhamos um nome oficial de guerra
e era por esse apelido que eramos obrigados a tratar-nos. Quando não
conheciamos o apelido diziamos: camarada. Esse companheiro, numa
noite saíu comigo, bebeu demais e cometeu erros graves contra alguns
dos membros da população local. Estavamos baseados em Montepuez, e
nessa pequena vila do mato, residia uma Rainha e uma Princesa,
veneradas pelo povo do sítio. Eu frequentava uma das cantinas que
pertencia à Princesa. Brincava com os habituais do lugar e eles
adoravam ver-me a lançar a minha faca de mato em sua direcção, tal
qual artista de circo... tinham confiança na minha habilidade.
Colocavam-se em pé contra a parede de madeira. Eu lançava a faca
e ela ia espetar-se a dois ou três centímetros a roçar os seus
cabelos... e riam-se, toda a gente adorava vêr-me fazer aquela
merda, estúpido que era... Graças aos céus nunca falhei, quando
não... bom.
A
Princesa tinha uma viola. Eu sabia tocar. Então, quando tocava o
vira ou o malhão e pagava umas cervejas... aquilo era o fim da
bicharada. Toda a gente batia palmas, todos pareciam felizes,
todos... A Princesa
apaixonou-se por mim. Era uma verdadeira mulher. Uma beldade em todo
o esplendor dos seus vinte e quatro anos. Uma estátua de bronze.
Certa noite uma sua parente teve dores de parto. Eu estava lá na
cantina e fui ao interior assistir ao acto de parir. Vi nascer um
belo rapaz, cor de rosa, que em poucos instantes se tornou
acastanhado. A Princesa quis fazer amor comigo naquela noite e ficou
a gostar... Ficamos amantes, mas na população ninguém podia saber.
E nunca ninguém soube. Nem mesmo o meu amigo “Pirata”.
O “Pirata”
foi acusado. Disseram que o “Vampiro” estava com ele mas que nada
fizera de mal. O Comandante chamou-nos aos dois e quis que eu
acusasse o “Pirata”. Respondi-lhe que nada vira de mal, embora
soubesse o que se tinha passado. O Comandante insistiu comigo para
denunciar o “Pirata” e salvar a minha pele... recusei sempre,
repetindo que estava com uma aborígene e nada tinha presenciado. Era
quase verdade.
Fomos os
dois para a prisão onde estivemos detidos sete dias. Quando saí da
prisão todos os camaradas falavam da nossa expulsão da companhia.
Por vezes, na camarata ou na cantina do quartel, eu cantava uns fados
e algumas canções de saudade.
Na primeira
morte que tinha ocorrido na companhia por acidente, o “Unimog”
que transportava a malta da logística tinha-se voltado numa curva e
tinha desfeito o cabo Moreira que trabalhava na cozinha do Quartel.
Eu conhecia-o bem porque tinha feito a recruta com ele na Infantaria
em Braga, e tinha sido o único de todo o Regimento que me
acompanhara para o Centro de Instrução de Comandos de Lamego. O
curso tinha-lhe corrido mal e ele ficara na Companhia na parte de
logística. Eramos amigos.
Triste, fui
para a cantina e comecei a tocar guitarra. O tenente Ferreira
Baptista, de Santo Tirso, repreendeu-me, dizendo que eu estava a
desrespeitar a memória do Moreira. Enervado, mas sem o mostrar,
disse-lhe que havia várias maneiras de chorar o meu amigo e,
atrevido, perguntei-lhe se ele tinha visto o filme Zorba, O Grego.
Ele respondeu que não, e eu retorqui: é pena!...
Dias
depois o tenente falou uns minutos comigo e, sem me pedir desculpa,
pediu. A verdade é que a partir desse incidente, a corrente começou
a passar melhor, entre nós... o pessoal adorava falar comigo.
Respeitava-me. Admirava-me. pediam-me conselhos. As únicas excepções
eram o furriel Pinto que tinha tido um problema comigo durante o
curso em Lamego, e o tal tenente Baptista por pertencerem ao mesmo
grupo de combate. Os camaradas
não queriam que eu fosse embora da companhia. O “Pirata”, não
lhes dizia grande coisa, mas eu, eu era o “Vampiro”, o poeta, o
camarada que dava opiniões ao agrado de toda a gente, o combatente
leal, corajoso e, por aquele tempo, já quase louco, mas de quem
todos gostavam pelo seu porte e conselho.
Estava na
caserna. Tocava a minha guitarra. Trouxeram garrafas de aguardente
1920, bebi como um sôfrego. Tocou a reunir para recolher. A noite
aproximava-se. O Alferes Espinheira fazia a chamada. Nos Comandos
tudo tem que ser conduzido com respeito. Mas eu estava completamente
bêbado e, em frente ao gabinete do Comandante, Companhia Operacional
formada, tirei a pila de fora e comecei a urinar e a lançar
impropérios contra a guerra, contra os terroristas, contra os
Comandos” contra...
O pessoal
atrapalha-se, o pessoal quer-me protejer, se o Sórraiva vê aquela
cena mete-me um tiro nos cornos mesmo em frente dos camaradas... o
Espinheira nem acaba a chamada e diz: dispersar! Vem ter comigo, vê
o meu estado, abana a cabeça e diz: “Ajudem-me a levá-lo prá
caserna.”
Adormeci.
Algum tempo depois levanto-me e convenço o sentinela a deixar-me
sair do quartel. Queria ver a minha Princesa...
Quase cinco
horas da manhã. O dia está a chegar. “Vampiro”, ainda bêbedo,
depois de fazer amor, quer entrar no quartel mas não pela porta de
armas. “Vampiro” é o maior! “Vampiro” vai mostrar à merda
daqueles comandecos que o querem mandar embora, o seu valor...
“Vampiro”
vai conseguir entrar nas instalações da famosa companhia dos
“Comandos Fantasmas” sem ninguém dar por isso... “Ides
vêr!” - pensava eu. O arame farpado rasgava-me a farda, os picos
aguçados rasgavam-me a pele, mas eu, pobre e bêbedo comandeco não
dava por nada. Contente, feliz da vida, consegui ultrapassar a
barreira protectora e, quando me encontrei dentro do quartel abri os
braços com raiva e pensei orgulhoso: “Viste! Consegui!”
Três
passos dados uma potente luz entrou no meu cérebro ferindo-me os
olhos e uma gargalhada geral soou de maneira estranha em meus
ouvidos. O alferes Espinheira com a sua equipa de combate dirigia-se
para mim dizendo: “Vampiro!
És o maior!” - e ria-se! ria-se com pena de mim!
O dia passou.
“Vampiro”, com uma dor horrível de cabeça, pediu dispensa de ir
ao refeitório. À noite, dez minutos antes da formação habitual do
recolher, todos os soldados e cabos, logística e operacional,
começaram a dirigir-se para frente do gabinete do Comandante e
conforme se vão juntando, começam baixinho a exclamar:
“Vampiro”!
“Vampiro”! - as vozes começam a levantar-se ! piro”!
“Vampiro”! - Depois mais alto: “Vampiro”! - Depois todos
em unissono e quase a gritar: “Vampiro”! VAMPIRO! VAMPIRO!!!
Aquele
conjunto de vozes vibrando em alto som é qualquer coisa de emocional
que quase faz medo. É a confusão respeitosa, é a rebelião numa
instituição com poderes tais que os oficiais estremeceram e à qual
o Comandante acorreu temeroso do pior.
Os
Comandos nunca abandonam a sua arma “G3”, nem para comer nem
para dormir. Esta acompanha-os sempre. Ao dirigirem-se para o
gabinete do Comandante e dos oficiais, quase cento e cinquenta homens
armados, irritados, a gritar: “Vampiro”! “Vampiro”!
“Vampiro”! - com toda a força dos seus pulmões... é incrível
e aterrador!
Em
princípio o Comandante Saraiva aconselhou calma. Mas como as coisas
não melhoravam, resolveu, ele também, gritar e disse:
“Não vale a pena
gritar. Foi a PIDE-DGS que resolveu a situação! Não posso fazer
nada! O “Vampiro” vai ser transferido. É tudo. Voltem às
casernas. Esta noite não há chamada!”
Toda a gente tinha um
respeito, sem limites, por aquele Comandante. Ele sabia-o. Depois de
um pequeno estilhaçar de vozes, o Saraiva repetiu:
“Hoje não há
formatura, nem chamada. Recolham às camaratas. É uma ordem!”
E o pessoal,
intranquilo mas em silêncio, obedeceu.
A
Princesa soube que ia perder um grande amor... “Vampiro” nada
podia fazer, e ela também não. Entretanto ela pensou que podia e,
vai daí, reune amigos e uma parte da população e - a alguns metros
de distância do quartel - organiza um batuque. Durante toda a noite
só se escutam no ar o rítmo dos tambores e uma canção, espécie
de ladaínha:
“Vampiro!
Vampirouuu! Vampirooooo! Não vai embora não! Vampiroooo Vampirooo
não vai embora não!”
É
triste recordar estes acontecimentos. É mesmo doloroso. Mas é a
verdade. Não! Não é romance! São partes da minha vida, enquanto
militar!
Esse
ferimento ocasionado nesse dia tinha quatro centimetros de
profundidade. Depois do Hospital de Nampula e quase quarenta dias nos
Adidos, voltei para Mocímboa do Rovuma para a frente de combate.
Alguns dias depois de ter chegado, pronto para continuar aquilo que
eu pensava ser a minha obrigação como filho de Portugal, fui
abraçado por um tal Kaulza de Arriaga que me elogiou em frente dos
homens, mas a verdade, é bom que se saiba, por essa altura já não
sabia se merecia elogio ou punição. A minha cabeça andava
baralhada a tal ponto que, ainda em Nampula, tinha-me pirado sem
autorização do “Quartel dos Adidos”, e durante quase um mês
não meti lá os pés. Estava a viver numa palhota da minha querida
Justina, que tinha mais de quarenta anos e queria um filho meu...
imagine-se, com aquela idade. A bronzeada e carente Justina que era
conhecida pela força que tinha nas coxas e mulher de partir cocos
com elas... com as coxas claro!
Bom, isso é outra
estória. Querem saber uma coisa? Quando hoje comecei a escrever
tinha na mente falar-vos das minhas desgraças actuais, para
desabafar um “bocadico”... só que, quando começo, ponho-me a
divagar, divagar e... bom. A minha perna dói-me. Estão a vêr? É
tão simples como isso. A cicatriz que tenho no interior da perna
direita, parece que ficou com um músculo cortado.
No
tempo que isso aconteceu, tinha 22 anos. Não dei muita importância
ao ferimento. Importante para mim era que o “coiso” estivesse
bom... é verdade que depois ainda fui ferido com um tiro no ombro,
de raspão, e com uns estilhaços na cabeça que decerto foram os
causadores de neste momento vos estar a aborrir... mas, como dizia,
não liguei grande coisa ao sucedido. Acontece que agora, quarenta
anos depois, o meu pé direito, na parte do calcanhar e pela perna
acima até à cicatriz, perdeu sensibilidade e começou a doer. E eu
penso como é que fui tão burro que, no tempo em que o poderia ter
feito, não pedi indemnização ao Estado. Muitos
o fizeram com menos ferimentos que eu.
Ora
neste momento, vivo com muitas dificuldades. Sobrevivo com oito euros
por dia. Resido numa espécie de garagem que não tem forro. A poeira
que, lentamente mas certinha, cai sobre mim enquanto aqui estou e,
especialmente, quando estou a dormir, pois que nessa posição as
partículas de pó tombam directamente sobre o corpo, essa poeira,
dizia, começou a dar-me cabo da pele do rosto e eu noto que tenho
uma espécie de eczema que me enerva. Por vezes penso: (julgo que sou
eu que penso!) “deixa lá essa merda pá, isso é mas é a
velhice!” Mas depois penso: “Se
tivesse dinheiro para ir ao médico, ou à farmácia comprar qualquer
coisa...” E logo depois: “tenho que ir à Assistência Social
pedir a carta que me dá direito a ir ao médico sem pagar...” mas
depois digo: “Vou mas é merda. Tenho vergonha de ir lá como um
desgraçado pedir esmola...” e não vou. E depois lixo-me.
Entretanto,
por causa do tabaco, comecei a ter umas cócegas irritantes por todo
o corpo, e a “Pécorinha” não está aqui para me coçar as
costas... ultimamente a irritação passou para a perna esquerda e
para cima da cicatriz e, a dado momento, não suportando mais a
irritação, coço-me com tal furor que rasgo a perna toda que está
a ficar repleta de feridas... Tenho,
pelo menos, dois irmãos que fizeram operação às hemorróides. Eu,
a partir dos cinquenta anos, comecei a sofrer do mesmo mal mas, com
verdade, nunca liguei muito ao problema. Ultimamente, as “cabras”
atacaram-me de tal maneira, ( talvez pela mudança que fui obrigado a
fazer na minha alimentação, agora não posso escolher, sou obrigado
a comer o que há por casa... ) que eu gasto rolos de papel
higiénico a tentar suster o sangue. Como deixei de trabalhar e vivo
miseravelmente, tenho medo de passar fome. ( será mesmo medo? ) Por
isso alimento-me como um porco (não sei se era mesmo porco que
queria dizer mas já agora fica assim!) e bebo em exagero. A barriga
avoluma-se a olhos vistos e isso irita-me pois não me quero tornar
num bandulho barrigudo como muitos dos vagabundos que vejo na gare do
Midi deitados sobre os bancos à espera de...
"...de que
estarão os vagabundos da gare do Midi, velhos, bêbedos e barrigudos
à espera?..." Perguntou-me certa vez um tipo "reguila"
que por acaso me acompanhava e ao qual respondi: Esperam exactamente
o mesmo que todos nós. Quer sejamos novos, sóbrios ou elegantes!
Ele tirou os óculos que usava, limpou-os instintivamente ao
cachecól, tentou treflectir, olhou-me com cara de parvo e respondeu:
Áh!...
Como não tenho
óculos em condições, já vejo mal, leio e escrevo muito, e não
tenho dinheiro para trocar de óculos, os olhos doem-me
constantemente e ...
Na quarta-feira o
Porto jogou e perdeu. Eu estive a jogar a sueca e também perdi.
Embora seja a minha única distração não gosto de perder, quem
gosta? Bebi uns copos a mais do que a conta. Estacionei mal o carro.
A Policia levou-o. Não tenho dinheiro para o ir levantar. O mais
certo é ficar sem ele pois cada dia que passa apreendido é preciso
pagar uma certa quantia e...
O
que é que isso tem a ver com a cicatriz e coisas que disse atrás?
Bom, é o seguinte: com todos os problemas que tenho, são tantos que
até tenho receio de vos contar, tive um sonho: e nesse sonho a
Pécorinha estava com o amante! (Era o amante ou era o cunhado dela?
Já não sei bem.) Havia para ali uma confusão de palavras, pessoas
e imagens que eu não conseguia definir bem quem circulava, dançava
ou fornicava no tal sonho que... havia todavia uma imagem que recordo
nitidamente e me fez despertar com um suor frio e de medo! A minha
companheira, que me tinha abandonado havia meses, conhecida nos meus
livros por Maria Sómente; Libelinha; Mulherzinha; Pécorinha, etc.,
já não estava com amante nenhum e, pelo contrário, abraçava-me.
Na
nossa prolongada separação, a mulherzinha tinha-se comportado como
uma santa, nenhum homem lhe tocara, nem tão pouco tinha ido aos
bailes. Ela adorava-me e queria voltar a viver comigo... e eu, feliz
e maravilhado murmurava: “Ah, amorzinho! Como é bom estar contigo!
Como é bom ter-te de novo nos meus braços! Como...”
Já
viram isto! Chamar amorzinho àquela “Pécorinha” babada por
falsos e insosso elogios... Já viram bem esta merda? Depois
de tudo o que ela me fizera, ali estava eu, no sonho, também eu...
todo baboso e encantado... como pode ser possível uma coisa destas?
Desculpem o desabafo, mas às vezes... é tarde. Sinto-me cansado.
Acho que estou com os copos. Vou tentar dormir.