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Ribadave

27 février 2009

O Libido em Jogo

O  LIBIDO EM  JOGO

 

    Mesmo que o desejasse não o poderia confirmar. Sei, isso sim, que muitos Invernos passaram sobre o acontecimento que vou tentar descrever. Por vezes, a poeira do tempo acumula-se com tal quantidade no cérebro de uma pessoa que esta, por muito boa memória que possua e por mais forte que seja o seu desejo de relatar a verdade sobre coisas do passado, não consegue, com precisão, escrever sem mentir. Daí a minha penitência por qualquer inconveniente falha da minha exausta memória. Se é verdade que quando escrevo, um dos meus objectivos principais é proporcionar a quem me lê, a possibilidade de tirar das minhas experiências algum proveito para as suas próprias existências, não queria de modo algum, faltar à verdade que tanto prezo mas que, infelizmente, vai desaparecendo da alma, e da pena, dos embevecidos intelectuais dos nossos dias.

  Razões profissionais levaram-me de abalada até Lisboa. Por aí me quedaria durante quase uma semana. Deveria ter os meus trinta e três anos. Era um adulto sadio, óptimo pai, marido exemplar, cumpridor de todas as obrigações familiares, profissionais, sociais; enfim, seguia a conhecida regras dos bons princípios... Na capital, após um dia de exaustivos contactos comerciais com os clientes da empresa, depois do refrescante duche, e do repasto regenerador das esvaecidas energias dispendidas durante a jornada da trabalho, resolvi, para minha satisfação pessoal, de dar um pulinho até um Bar próximo do Hotel onde me tinha instalado, tentando com essa fuga do mundo dos negócios, subtrair um pouco o meu cérebro do alucinante mundo dos números e cifrões de que era avassalado a todo o instante. Conhecer um pouco a vida nocturna da grande Lisboa, se possível acompanhado, seria um óptimo tubo de escape paras as preocupações do quotidiano.

    No Snack-bar onde entrei, indivíduos de ambos os sexos confundiam-se no falar e no vestir e, francamente, não era com facilidade que um turista de ocasião como eu distinguiria à primeira vista se o vizinho do lado de frente ou da retaguarda era macho ou fêmea; de tal modo era perfeita a roupagem e os gestos anímicos de alguns homossexuais ali presentes. Contudo, de todo este leilão sexual existente, nada me alarmava, pois de ver ou ouvir falar, conhecia já o suficiente sobre estes bares para me sentir razoavelmente à vontade no meio ambiente em que estava, casualmente, inserido. Nessa noite fui deitar-me cedo pois estava realmente cansado e, com verdade, aquele Bar de furtivo prazer não teve nada de especial que me atraísse o olhar por mais de alguns segundos. Na noite seguinte, voltei a esse lugar com a intenção única de beber um ginginha e por-me logo ao fresco em busca de um sítio que fosse mais próprio à busca de companhia para um diálogo amigo. Nessa noite todavia, algo me chamou a atenção. Os meus sentidos tinham fixado com pormenor os gestos salutares, vivos e alegres da jovem empregada que servia nas mesas. O seu gargalhar alto, desnibido. O andar constante de mesa em mesa e destas ao balcão. O seu equilíbrio perfeito de bandeja na mão carregada de copos por entre aquela multidão ululante era algo de perfeito. A mocinha era como uma máquina sincronizada e sorridente a fazer trocos, a servir, a empurrar os mais tocados com uma disfarçada gingadela de rabo... aquela moça era diferente e possuía qualquer coisa de especial. Distinguia-se da turbamulta como uma pérola real num emaranhado de pedras falsas.

    Não foram poucas as vezes em que notei que um ou outro cliente mais afoito, tentava levar de vencida o espírito relutante da jovem mulher; a estes, todavia, sempre ela se recusava. Respondia-lhes que escolhessem por outro lado pois que ela não estava ali para fazer “saídas” mas para servir às mesas! Tentando tirar nabos da púcara e de nota de vinte na mão, puxei pelo porteiro que me confirmou que na verdade a moça não fazia fretes a ninguém. Ressalvava um caso ou outro em que ela, por simpatia, acompanhava alguém já muito conhecido da casa, dos patrões ou dos colegas, dizendo também que a menina gostava imenso de ouvir o fado e que por vezes, terminada a hora de serviço, ia até uma casa típica, ali perto, escutar a tal canção dita nacional... 3 Na terceira noite consecutiva de idas ao Bar, notando a boa disposição da jovem, resolvi tentar a minha sorte. Depois de ter avaliado o seu aspecto exterior, senti uma espécie de necessidade em avalisar o seu modo de ser interior. Assim, convidei-a para, em minha companhia, ir beber um copo e assistir a uma sessão de fado. Incrédulo, pois não me julgava mais do que os outros, quando me preparava para escutar a habitual frase “sinto muito, mas...” ouvi-a responder sim, senhor. Por acaso nessa noite precisava de arejar e que lhe apetecia escutar um pouco a tristeza dos outros e que teria muito gosto em fazer-me companhia. Satisfeito pelo inesperado triunfo obtido no primeiro ataque a feminino elemento de valor tão evidente, esperei a sua saída e, como velhos amigos, abalamos em curiosa conversa a caminho da tal taberna fadista.Com verdade, não recordo o nome da moça, se o disse, o que é natural, perdeu-se nas trevas do tempo.

    Era de estatura meã. De corpo cheio, sem ser gorda, possuía um palmo de cara bonito mas não se distinguia em nada de especial das gentes vulgares, qual esposa caseira interessada no lar e no conforto e carinho a proporcionar aos seus mais queridos. Resolvemos jantar. Depois se um opípara lagosta regada com um vinho branco especial, entramos nuns bifinhos tenrinhos de cebolada preparados com requinte e de um sabor invulgar e servimo-nos de um rosé leve que amaciava a língua e apetecia repetir. O repasto e o ambiente convidava à nostalgia, e após uma ligeira e amistosa troca de impressões sobre os gostos e desejos de cada um dos dois, a minha mão maliciosa principiou a trabalhar o eterno e humano elemento. Sem tibiezas ela aconchegou-se contra mim e permitiu que a acariciasse com mais fulgor. Na continuação dos afagos, ela teve um ligeiro estremecimento e, sem mais nem menos disse: - Paga a conta. Vamos embora. Quero foder contigo!

     A hora era tardia. Fomos, inconscientemente directos para o hotel. Para espairecermos os cérebros toldados pelo alcool ingerido, caminhamos abraçados para debaixo do chuveiro. Era verão e as noites estavam quentes. Com o liquido vivificante a correr-nos pelos corpos, continuamos com as massagens interrompidas pela súbita saída da taberna.

     A jovem desnudada tinha um corpo esbelto, lindo, apetitoso. Eu era jovem, robusto, dominador. Com a água ainda a correr pela epiderme, saltamos da banheira directamente para o leito, onde tombamos em comunhão de desejo, carícias e gemidos. Os nossos corpos jovens, num querer comum, entregaram-se sem complexos numa união sexual desejada e certamente abençoada pela natureza. Eramos adultos. Conscientes. Não havia pecado. Não existia adultério. Mal algum estava nessa união.

Nas relações sexuais consideradas pela lei vigente como adulteras, o maior crime, quanto a mim, está na mentira. As relações sexuais quando praticadas nos lugares certos, deviam ser consideradas como um jogo. Um jogo de amor e nada mais. Qualquer indivíduo por mais honesto que queira ser para consigo mesmo, não consegue evitar uma relação amorosa com um parceiro que o atraia sexualmente, desde que as circunstâncias o permitam e a ocasião se proporcione.

     Não é, jamais, desonesto, o indivíduo que assim actua; desde que o seu parceiro, considerado legal pela sociedade, seja posteriormente conhecedor desse amplexo circunstâncial. O que, infelizmente, não existe, é a capacidade mental na maioria dos indivíduos. Não existe compreensão, tolerância. Assim, na maior parte dos casos, o amoroso que casualmente encontrou no caminho da sua existência um parceiro ideal para entrar num joguinho mil vezes desejado pelo subconsciente, perde-se em conjecturas, teme o ciúme do parceiro legal, e esconde-se por trás de mentiras abjectas que lhe vai criar um hábito, esse sim, de coabitação desonesta. A partir do instante em que fazemos da mentira a constante do nosso dia a dia, perdemos horas e horas de angústia, de pesadêlos desnecessários, a fim de engendrar as “verdades” que queremos incutir no companheiro que connosco coabita. Depois entramos no cíclo ignaro que é estarmos eternamente a mentirmos uns aos outros. Mentem os pais e os filhos, depois estes crescem e continuam a mentir como políticos, religiosos, patrões, operários...

 

                                      Terminados que foram os meus profissionais afazeres, regressei ao meu habitat familiar e social. Na primeira noite a passar no leito conjugal, e enquanto preparava a minha companheira para o coito desejado pela ausência, fui-a informando do sucedido. Era a segunda vez em cinco anos de casado que tal me sucedera. Com um sorriso maroto a bailar-lhe nos olhos brilhantes, ela foi-me pedindo mais pormenores do acontecido e, ao mesmo tempo que me escutava, mexia-se ritmada, vigorosa e satisfeita, no amplexo e sempre agradavel jogo amoroso que bem conhecia e tão bem dominava. Após o êxtase simultâneo, sempre certinho que ela conseguia impor nas nossas relações sexuais, murmurando: - ainda não... espera um bocadinho... não... – palavras sussurantes, compassadas, amorosas... até que: - agora meu amor! anda! – e era o fim. O fim do mundo! Finalmente, quando a minha parceira se soergueu no leito a fim de se dirigir para a casa de banho, virou-se para mim e, com um sorriso amalandrado, querendo mostrar como me compreendia bem disse: - Qualquer dia tenho que ser eu a fazer assim uma viagem porreirinha a ver se, também eu, tenho a sorte de encontrar parceiro que me seduza!...

P.S. Desculpem qualquer palavrinha mais realista!


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27 février 2009

O TAMBOR

O TAMBOR

Neste desalento / Neste viver desencantado / Existe o grito lancinante De todo um povo desesperado. / Que se ludibrie a criança /Para lhe evitar traumatismos / Dizendo-lhe que B é A / E que o contrário será / O que A ou B quiser / Ainda vá que não vá...  / Agora ludibriar o povo Fazendo dele um tambor / Só porque a riqueza da terra / Causa inveja e faz guerra / Para arruinar o pobre / E enriquecer o senhor... / Não! / É tempo de dizer basta! / Que o véu seja rasgado / De uma vez para sempre / Que se cuide mais do povo / Gente pobre que labuta / E que em àrdua luta / Tanto sofre por  seu  pão.

Que a corja que os suga / Os definha e amordaça / Seja  corroida por lepra / No presente e no futuro / Para que o desalento / Que o povo avassala / Se transforme na semente / Da fartura do porvir!

Súcia de homúnculos! / Corja de políticos incompetentes! / Basta! Basta de tanto mentir!

26 février 2009

Boa noite companheiros de solidão


                                                   5


     Boa noite companheiro de solidão. Não tenho sono, estou com frio e encontro-me só. Comigo não há cão, gato ou canário com quem possa desabafar. Coloquei uma camisola sobre os ombros e uma manta sobre os joelhos. Calcei outras peúgas sobre as que calçado tinha. Está muito frio, não consigo dormir e preciso falar.

    Não vou dizer que dia é hoje, para quê, qual é a importância de uma data... em principio, à parte cronistas e historiadores, eruditos em busca de certezas sobre os livros que gostariam de ver editados, nós... as pesssoas simples, que desfolhamos um livro para passar o tempo, que nos importa se ele foi escrito a dez de Janeiro ou vinte e três de Maio? O importante é  gostar do livro. Eu gosto de escrever e penso que à parte lêr não sei fazer mais nada do que isso mesmo, escrever.  Não vamos aqui dialogar se o sei fazer bem ou não, na verdade nós... estamo-nos marimbando para tal questão. Vamos deixar esse ridículo problema, se acaso ele existe, aos coerentes, bem ou maldizentes críticos; na realidade nós... estamos muito longe dessas pequenas mesquinhices literárias. Aqui o importante é que eu gosto de escrever e, com certeza, o leitor até gosta de lêr. Contudo, penso que isso também não é relevante para o caso que me trouxe aqui.    

     Durante o tempo em que estive na guerra em Moçambique, fui ferido numa emboscada. Esse ataque à coluna militar em que eu seguia, era conduzido pelos gloriosos libertadores daquela imensa, rica, e histórica terra. Os guerrilheiros tentavam eliminar o invasor. Para eles, o invasor, eram aqueles portugueses de merda, que já andavam (e por  lá continuavam) a roubar, violar e matar, havia mais de quinhentos anos! E ninguém queria saber disso, ninguém ligava nenhuma àquela pouca vergonha...

    Então, nessa tal emboscada contra os soldados portugueses, que aconteceu na picada entre Mueda e Mocimboa do Rovuma a 18 de Janeiro de 1968, uma granada ofensiva veio do meio do mato, lançada pelos libertadores do povo e do território do grande e heróico Gungunhana que, segundo parece, só era herói porque tinha a ajuda económica dos nossos “amigos” ingleses... e, para minha desgraça, a tal granada veio cair sobre a parte interior da minha perna direita, desfazendo o lado de cima da bota de cabedal que voou em fanicos, e aproveitou o instante para levar com ele (o cabedal é que levou com ele, claro!) quatro centímetros de pele, carne e partes dos músculos, veias, ou qualquer merda do género que antes da granada explodir me pertencia. Por esse tempo, usava um comprido lenço de seda preto, que servia de cachecól - e para outras coisas que necessárias fosse - cachené que tinha recebido do meu capitão “Comando” antes de levar dele um grande pontapé no cú e me ter enviado para aquela Companhia de Cavalaria. Então, com esse providencial lenço, fiz um bem e apertado nó na perna para segurar o sangue, operação essa a que a “maralha” costumava chamar garrote. Digo isto para quem não saiba pois, nunca se sabe se... O alferes Jáquité, que era um oficial do exército português e era também um preto da Guiné-Bissau que, por acaso... também era um território explorado, roubado... já disse isso antes. Ora, esse tal oficial, que era o tipo mais porreiro do mundo e que adorava andar borracho sempre que lhe era possível, ( por esse tempo eu não andava borracho, mas agora desforro-me...) como ia dizendo, esse preto era um traidor que lutava ao meu lado, contra os seus heróicos irmãos de Moçambique e, nesse ataque, teve uma... que raio de palavra devo usar aqui?... Bom,  teve uma espécie de “remorso instantâneo" que o obrigou a meter a  cornadura e carapinha ( não estou a dizer mal dele porque ele não era casado e, como já disse, ele era um dos tipos mais bacanas que algum dia conheci ) na berma da picada e ficou ali estarrecido, com receio de matar os irmãozinhos, que não eram da Guiné-Bissau mas eram irmãos na língua oficial dos territórios onde tinham nascido e na bronzeada cor da pele. Que vocês acreditem ou não no que estou  práqui a dizer, não me preocupa. A verdade é que eu  não sentia dor nenhuma na perna e, com dois horrorosos gritos de Comando, conduzi o pelotão chefiado pelo corajoso Jaquité,  terminando, ao fim de uns tiritos,  por pôr em debandada, os heróicos defensores dos russos; chineses; americanos; franceses... alto! Acho que não era isto que queria dizer. Mas, já agora!... fica assim.

    Vocês sabiam que o genial senhor doutor Almeida Santos, um dos três ministros... que assinou o famoso acordo de Lusaka com o Samora, indivíduo que anda lá por Lisboa há mais de trinta anos a viver à custa da política, escreveu em Lourenço Marques um livrinho, logo a seguir ao 25 de Abril, que se intitulava “JÁ AGORA!”  Não sabiam? Então ficam a saber mais qualquer coisinha...

    A coluna tinha saido de Mueda para Mocímboa do Rovuma. Nesse ataque tivemos feridos. Recordo que ia sentado ao lado do condutor da “Berliet”, condutor que tentava conduzir os feridos o mais depressa possível. Recordo que nas minhas costas se situava o atirador da metralhadora pesada e que, enquanto seguiamos para o acampamento, um leopardo de uma beleza espectacular, passou em frente à viatura em que eu seguia e que, em passos ágeis, nos olhou a todos, (todos, foi isso que escrevi) com ar de desprezo? Bom, isso também não importa muito, quem era aquele merdeiro, dito leopardo, para desprezar com aquele ar de superioridade os grandes defensores do Império Português?... Quando chegamos à base, no hospital de campanha, o médico, que me conhecia, veio a correr tratar de mim. Eu, como fui sempre uma grande besta na vida, disse: "Vai tratar ali do algarvio, ele levou uma rajada!” O meu amigo doutor, que era mesmo meu amigo, vá lá saber-se porquê, fazendo de conta que não me ouviu, continuou a tratar de mim. Então, mais uma vez, tive que usar a tal voz de Comando que faz tremer terroristas, homens e até  leopardos... e só desse modo é que o doutor foi a correr tratar do meu pobre  camarada de cavalaria Pobre cavalaria!... ( porque se teria suicidado o grande Comandante Mousinho de Albuquerque?)

     Quando, já dentro do helicóptero, seguia para o hospital de Mueda, como os feridos eram muitos,  não havia espaço para nos mexermos. É verdade que a viagem era curta, todavia, durante o tempo em que ela durou, passou-se algo que gostaria de vos contar: no mesmo helicóptero, ia outro ferido. Um preto de Moçambique, (mais um traidor) um latagão calmo e de valor, sempre bem disposto e dos poucos que não tinha mêdo de alinhar comigo nas refregas do mato, que tinha sido ferido no abdómen e a compressa que o médico lhe colocara no ferimento, não conseguia reter convenientemente o sangue que dele vertia. Então, esse sangue pegajoso e frio, do meu amigo, que comigo defendia a Bandeira das Quinas, começou a cair sobre o meu sobrolho: ping, ping, ping,  e isso principiou a enervar-me. Contudo, instantes depois, pensei no tal latagão, enorme, quase dois metros de altura, na imagem bem viva na minha memória do seu sorriso, quando em Mueda, antes de iniciar a viagem para o Rovuma, bebia em minha companhia uma boa e fresca cerveja 2M, e já não me importei que o seu sangue, igualzinho ao meu, bem português, tombasse sobre mim.

    Afinal ele era meu amigo. Na realidade todos eram meus amigos. Eu era o “Vampiro”. O “Vampiro” dos Comandos. E decerto o sangue até vinha a calhar pois que ultimamente andava com um bocado de fraqueza... Se eu abrisse os lábios, como era “vampiro”, estão a topar... podia aproveitar para  retemperar forças perdidas... Merda! Já estou a fugir para o romanesco e sentimental. Isto não é um romance. É simplesmente mais um livreco de recordações do tempo em que eu era rico. Rico de saúde, claro, e não era assim deste modo que o tinha imaginado e gostaria de escrever... Bom, adiante. Como não vejo maneira de modificar o texto e o engenho neste momento não é muito...

     O tal preto, latagão, com quase dois metros de altura e 120 kilos de peso, estava a chorar sob as tendas do hospital de campanha! O meu irmão de Moçambique que tinha lutado e sofrido ao meu lado, tinha sido ferido! Estava a chorar com medo de morrer e eu não gostei de ver isso. Aquele carão preto, mas simpático e sempre bem disposto, não ficava bem com as lágrimas. Eu sei que ele era um valente. Eu sei que ele era português e adorava o Benfica! Pronto está dito! Eu tenho mais tendência para o Porto porque os meus meninos nasceram lá, mas ele gostava mesmo era de Portugal e do Benfica. Essa é que é a verdade e o resto são tretas!

    Chegámos à base de Mueda e fomos transportados para o hospital de campanha. No momento em que estavam a tirar-me resíduos de carne da perna, apareceu o meu antigo comandante dos Comandos ( penso que a minha antiga Companhia estava nessa zona para entrar numa grande operação ( Nó Gordio?) ao lado de mais dois oficiais dos Comandos. Como o médico estava a tirar-me as partículas de carne sem anestesia eu tinha que respirar fundo - nos momentos em que ele, com a pinça, praticava a operação - para logo a seguir expulsar o ar acumulado... e a dor horrível que tal me causava. Então, o comandante “Sórraiva” para me dar coragem, (que graças à minha natureza era coisa que não me faltava) colocou-se por detrás de mim e, agarrando os meus ombros dizia: “Merda Vampiro! Vês? Porque raio quiseste tu sair da minha companhia?” E eu, baixinho, dizia: vai mas é tu à merda! Saí da tua companhia e da tua equipa pessoal porque tu quiseste!

Durante o trajecto de Nampula para o hospital militar 125, dentro do "Nordatlas" ,vi que só tinha uma bota, a outra tinha ficado em Mueda. Pensei: “E agora, como é que vou andar?”

    Eu sei que o pensamento que me veio à cabeça, naquele momento, foi estúpido. Com bota ou sem botas eu não andaria a pé tão cedo, todavia, foi isso mesmo que pensei. Depois lembrei-me que o Saraiva, o tal comandante dos Comandos que me deu o pontapé no traseiro, enquanto me segurava os ombros e me dizia para respirar fundo, no momento em que o enfermeiro me tirava as tais partículas de carne da perna ensanguentada, me tinha colocado qualquer coisa no bolso da camisa do camuflado. Fui ver o que tinha sido. O “Sórraiva”, imaginem, tinha metido lá quinhentos escudos! É verdade pá, quinhentos escudos e, nessa altura, o meu salário na vida militar era de novecentos escudos por mês!... Não quero ser vaidoso! Mas a verdade é a verdade. Toda a gente gostava do “Vampiro”. Até os oficiais! Outros tempos...

     Do mau momento que o meu amigo e alferes Jaquité viveu durante a emboscada, nenhum soldado deu por isso, a não ser eu que ia a seu lado. O meu amigo superior falou com o Comandante da Companhia e disse-lhe que a minha reacção instintiva em combate naquela emboscada salvara muitas vidas. Talvez  todo o pelotão. Que, se não fosse a minha reação imediata, podia ser a catástrofe e que por isso gostaria que eu fosse por ele, Comandante, louvado com a medalha de guerra... O capitão Garcia perguntou: “Mas esse gajo não é aquele tipo... o “Vampiro” dos Comandos que está aqui de castigo?” E o Jaquité, vendo que o grande chefe me conhecia, respondeu entusiasmado: “Sim, sim! é esso mesmo! é um bravo e...” Nesse instante o Garcia desinteressado da conversa disse: “Esse tal de “Vampiro” é Comando! E como Comando,  não fez mais do que a sua obrigação! É para isso que eles são treinados!” E assim dizendo virou costas ao atónito  Jaquité que, a partir daí, ainda bebia mais “wisky” que antes...   

    Tempos depois, no Sul da Província, já em Mutarara, com uma grande carraspana nos cornos, o alferes Jaquité olhava para mim de olhar nublado e dizia: “O teu lugar não é à beira dos soldados! O teu verdadeiro lugar é como Comandante da Companhia! E eu sorria dessas coisas. Sorria e não compreendia muito bem o que é que ele pretendia dizer; por esse tempo. Agora compreendo, mas já é tarde.

    Quando estava nos Comandos tinha um camarada inseparável que era apelidado de “Pirata”.  Nos comandos todos tinhamos um nome oficial de guerra e era por esse apelido que eramos obrigados a tratar-nos. Quando não conheciamos o apelido diziamos: camarada. Esse companheiro, numa noite saíu comigo, bebeu demais e cometeu erros graves contra alguns dos membros da população local.  Estavamos baseados em Montepuez, e nessa pequena vila do mato, residia uma Rainha e uma Princesa, veneradas pelo povo do sítio. Eu frequentava uma das cantinas que pertencia à Princesa. Brincava com os habituais do lugar e eles adoravam ver-me a lançar a minha faca de mato em sua direcção, tal qual artista de circo... tinham confiança na minha habilidade. Colocavam-se em pé contra a parede de madeira. Eu lançava a faca e ela ia espetar-se a dois ou três centímetros a roçar os seus cabelos... e riam-se, toda a gente adorava vêr-me fazer aquela merda, estúpido que era... Graças aos céus nunca falhei, quando não... bom.

     A Princesa tinha uma viola. Eu sabia tocar. Então, quando tocava o vira ou o malhão e pagava umas cervejas... aquilo era o fim da bicharada. Toda a gente batia palmas, todos pareciam felizes, todos... A Princesa apaixonou-se por mim. Era uma verdadeira mulher. Uma beldade em todo o esplendor dos seus vinte e quatro anos. Uma estátua de bronze. Certa noite uma sua parente teve dores de parto. Eu estava lá na cantina e fui ao interior assistir ao acto de  parir. Vi nascer um belo rapaz, cor de rosa, que em poucos instantes se tornou acastanhado. A Princesa quis fazer amor comigo naquela noite e ficou a gostar... Ficamos amantes, mas na população ninguém podia saber. E nunca ninguém soube. Nem mesmo o meu amigo “Pirata”.

     O “Pirata” foi acusado. Disseram que o “Vampiro” estava com ele mas que nada fizera de mal. O Comandante chamou-nos aos dois e quis que eu acusasse o “Pirata”.  Respondi-lhe que nada vira de mal, embora soubesse o que se tinha passado. O Comandante insistiu comigo para denunciar o “Pirata” e salvar a minha pele... recusei sempre, repetindo que estava com uma aborígene e nada tinha presenciado. Era quase verdade.

     Fomos os dois para a prisão onde estivemos detidos sete dias. Quando saí da prisão todos os camaradas falavam da nossa expulsão da companhia. Por vezes, na camarata ou na cantina do quartel, eu cantava uns fados e algumas canções de saudade.

    Na primeira morte que tinha ocorrido na companhia por acidente, o “Unimog” que transportava a malta da logística tinha-se voltado numa curva e tinha desfeito o cabo Moreira que trabalhava na cozinha do Quartel. Eu conhecia-o bem porque tinha feito a recruta com ele na Infantaria em Braga, e tinha sido o único de todo o Regimento que me acompanhara para o Centro de Instrução de Comandos de Lamego. O curso tinha-lhe corrido mal e ele ficara na Companhia na parte de logística.  Eramos amigos.

    Triste, fui para a cantina e comecei a tocar guitarra. O tenente Ferreira Baptista, de Santo Tirso, repreendeu-me, dizendo que eu estava a desrespeitar a memória do Moreira. Enervado, mas sem o mostrar, disse-lhe que havia várias maneiras de chorar o meu amigo e, atrevido, perguntei-lhe se ele tinha visto o filme Zorba, O Grego. Ele respondeu que não, e eu retorqui: é pena!...

   Dias depois o tenente falou uns minutos comigo e, sem me pedir desculpa, pediu. A verdade é que a partir desse incidente, a corrente começou a passar melhor, entre nós... o pessoal adorava falar comigo. Respeitava-me. Admirava-me. pediam-me conselhos. As únicas excepções eram o furriel Pinto que tinha tido um problema comigo durante o curso em Lamego, e o tal tenente Baptista por pertencerem ao mesmo grupo de combate. Os camaradas não queriam que eu fosse embora da companhia. O “Pirata”, não lhes dizia grande coisa, mas eu, eu era o “Vampiro”, o poeta, o camarada que dava opiniões ao agrado de toda a gente, o combatente leal, corajoso e, por aquele tempo, já quase louco, mas de quem todos gostavam pelo seu porte e conselho.

     Estava na caserna. Tocava a minha guitarra. Trouxeram garrafas de aguardente 1920, bebi como um sôfrego. Tocou a reunir para recolher. A noite aproximava-se. O Alferes Espinheira fazia a chamada. Nos Comandos tudo tem que ser conduzido com respeito. Mas eu estava completamente bêbado e, em frente ao gabinete do Comandante, Companhia Operacional formada, tirei a pila de fora e comecei a urinar e a lançar impropérios contra a guerra, contra os terroristas, contra os Comandos” contra...

     O pessoal atrapalha-se, o pessoal quer-me protejer, se o Sórraiva vê aquela cena mete-me um tiro nos cornos mesmo em frente dos camaradas... o Espinheira nem acaba a chamada e diz: dispersar! Vem ter comigo, vê o meu estado, abana a cabeça e diz: “Ajudem-me a levá-lo prá caserna.”

     Adormeci. Algum tempo depois levanto-me e convenço o sentinela a deixar-me sair do quartel. Queria ver a minha Princesa...

     Quase cinco horas da manhã. O dia está a chegar. “Vampiro”, ainda bêbedo, depois de fazer amor, quer entrar no quartel mas não pela porta de armas. “Vampiro” é o maior! “Vampiro” vai mostrar à merda daqueles comandecos que o querem mandar embora, o seu valor...

     “Vampiro” vai conseguir entrar nas instalações da famosa companhia dos “Comandos Fantasmas” sem ninguém dar por isso... “Ides vêr!” -  pensava eu. O arame farpado rasgava-me a farda, os picos aguçados rasgavam-me a pele, mas eu,  pobre e bêbedo comandeco não dava por nada. Contente, feliz da vida, consegui ultrapassar a barreira protectora e, quando me encontrei dentro do quartel abri os braços com raiva e pensei orgulhoso: “Viste! Consegui!”

     Três passos dados uma potente luz entrou no meu cérebro ferindo-me os olhos e uma gargalhada geral soou de maneira estranha em meus ouvidos. O alferes Espinheira com a sua equipa de combate dirigia-se para mim dizendo: “Vampiro! És o maior!” -  e ria-se! ria-se com pena de mim!

 

O dia passou. “Vampiro”, com uma dor horrível de cabeça, pediu dispensa de ir ao refeitório. À noite, dez minutos antes da formação habitual do recolher, todos os soldados e cabos, logística e operacional, começaram a dirigir-se para frente do gabinete do Comandante e conforme se vão juntando, começam baixinho a exclamar:

Vampiro”! “Vampiro”! - as vozes começam a levantar-se ! piro”! “Vampiro”! -  Depois mais  alto: “Vampiro”!  -  Depois todos em unissono e quase a gritar: “Vampiro”! VAMPIRO! VAMPIRO!!!

     Aquele conjunto de vozes vibrando em alto som é qualquer coisa de emocional que quase faz medo. É a confusão respeitosa, é a rebelião numa instituição com poderes tais que os oficiais estremeceram e à qual o Comandante acorreu temeroso do pior.

     Os Comandos nunca abandonam  a sua arma “G3”, nem para comer nem para dormir. Esta acompanha-os sempre. Ao dirigirem-se para o gabinete do Comandante e dos oficiais, quase cento e cinquenta homens armados, irritados, a gritar: “Vampiro”! “Vampiro”! “Vampiro”! - com toda a força dos seus pulmões... é incrível e aterrador!

     Em princípio  o Comandante Saraiva aconselhou calma. Mas como as coisas não melhoravam, resolveu, ele também, gritar e disse:

     “Não vale a pena gritar. Foi a PIDE-DGS que resolveu a situação! Não posso fazer nada! O “Vampiro” vai ser transferido. É tudo. Voltem às casernas. Esta noite não há chamada!”

 

   Toda a gente tinha um respeito, sem limites, por aquele Comandante. Ele sabia-o. Depois de um pequeno estilhaçar de vozes, o Saraiva repetiu:

       “Hoje não há formatura, nem chamada. Recolham às camaratas. É uma ordem!”

  E o pessoal, intranquilo mas em silêncio, obedeceu.

     A Princesa soube que ia perder um grande amor... “Vampiro” nada podia fazer, e ela também não. Entretanto ela pensou que podia e, vai daí, reune amigos e uma parte da população e - a alguns metros de distância do quartel - organiza um batuque. Durante toda a noite só se escutam no ar o rítmo dos tambores e uma canção, espécie de ladaínha:

   “Vampiro! Vampirouuu! Vampirooooo! Não vai embora não! Vampiroooo Vampirooo não vai embora não!”

     É triste recordar estes acontecimentos. É mesmo doloroso. Mas é a verdade. Não! Não é romance! São partes da minha vida, enquanto militar! 

     Esse ferimento ocasionado nesse dia tinha quatro centimetros de profundidade. Depois do Hospital de Nampula e quase quarenta dias nos Adidos, voltei para Mocímboa do Rovuma para a frente de combate. Alguns dias depois de ter chegado, pronto para continuar aquilo que eu pensava ser a minha obrigação como filho de Portugal, fui abraçado por um tal Kaulza de Arriaga que me elogiou em frente dos homens, mas a verdade, é bom que se saiba, por essa altura  já não sabia se merecia elogio ou punição. A minha cabeça andava baralhada a tal ponto que, ainda em Nampula, tinha-me pirado sem autorização do “Quartel dos Adidos”, e durante quase um mês não meti lá os pés. Estava a viver numa palhota da minha querida Justina, que tinha mais de quarenta anos e queria um filho meu... imagine-se, com aquela idade. A bronzeada e carente Justina que era conhecida pela força que tinha nas coxas e mulher de partir cocos com elas... com as coxas claro!

     Bom, isso é outra estória. Querem saber uma coisa? Quando hoje comecei a escrever tinha na mente falar-vos das minhas desgraças actuais, para desabafar um “bocadico”... só que, quando começo, ponho-me a divagar, divagar e... bom.  A minha perna dói-me. Estão a vêr? É tão simples como isso. A cicatriz que tenho no interior da perna direita, parece que ficou com um músculo cortado.

   No tempo que isso aconteceu, tinha 22 anos. Não dei muita importância ao ferimento. Importante para mim era que o “coiso” estivesse bom... é verdade que depois ainda fui ferido com um tiro no ombro, de raspão, e com uns estilhaços na cabeça que decerto foram os causadores de neste momento vos estar a aborrir... mas, como dizia, não liguei grande coisa ao sucedido. Acontece que agora, quarenta anos depois, o meu pé direito, na parte do calcanhar e pela perna acima até à cicatriz, perdeu sensibilidade e começou a doer. E eu penso como é que fui tão burro que, no tempo em que o poderia ter feito, não pedi indemnização ao Estado. Muitos o fizeram com menos ferimentos que eu.

     Ora neste momento, vivo com muitas dificuldades. Sobrevivo com oito euros por dia. Resido numa espécie de garagem que não tem forro. A poeira que, lentamente mas certinha, cai sobre mim enquanto aqui estou e, especialmente, quando estou a dormir, pois que nessa posição as partículas de pó tombam directamente sobre o corpo, essa poeira, dizia, começou a dar-me cabo da pele do rosto e eu noto que tenho uma espécie de eczema que me enerva. Por vezes penso: (julgo que sou eu que penso!) “deixa lá essa merda pá, isso é mas é a velhice!” Mas depois penso: “Se tivesse dinheiro para ir ao médico, ou à farmácia comprar qualquer coisa...” E logo depois: “tenho que ir à Assistência Social pedir a carta que me dá direito a ir ao médico sem pagar...” mas depois digo: “Vou mas é merda. Tenho vergonha de ir lá como um desgraçado pedir esmola...” e não vou. E depois lixo-me.

   Entretanto, por causa do tabaco, comecei a ter umas cócegas irritantes por todo o corpo, e a “Pécorinha” não está aqui para me coçar as costas... ultimamente a irritação passou para a perna esquerda e para cima da cicatriz e, a dado momento, não suportando mais a irritação, coço-me com tal furor que rasgo a perna toda que está a ficar repleta de feridas... Tenho, pelo menos, dois irmãos que fizeram operação às hemorróides. Eu, a partir dos cinquenta anos, comecei a sofrer do mesmo mal mas, com verdade, nunca liguei muito ao problema. Ultimamente, as “cabras” atacaram-me de tal maneira, ( talvez pela mudança que fui obrigado a fazer na minha alimentação, agora não posso escolher, sou obrigado a comer o que há por casa... )  que eu gasto rolos de papel higiénico a tentar suster o sangue. Como deixei de trabalhar e vivo miseravelmente, tenho medo de passar fome. ( será mesmo medo? ) Por isso alimento-me como um porco (não sei se era mesmo porco que queria dizer mas já agora fica assim!) e bebo em exagero. A barriga avoluma-se a olhos vistos e isso irita-me pois não me quero tornar num bandulho barrigudo como muitos dos vagabundos que vejo na gare do Midi deitados sobre os bancos à espera de...



     "...de que estarão os vagabundos da gare do Midi, velhos, bêbedos e barrigudos à espera?..."  Perguntou-me certa vez um tipo "reguila" que por acaso me acompanhava e ao qual respondi: Esperam exactamente o mesmo que todos nós. Quer sejamos novos, sóbrios ou elegantes! Ele tirou os óculos que usava, limpou-os instintivamente ao cachecól, tentou treflectir, olhou-me com cara de parvo e respondeu: Áh!...   

     Como não tenho óculos em condições, já vejo mal, leio e escrevo muito, e não tenho dinheiro para trocar de óculos, os olhos doem-me constantemente e ...

   Na quarta-feira o Porto jogou e perdeu. Eu estive a jogar a sueca e também perdi. Embora seja a minha única distração não gosto de perder, quem gosta? Bebi uns copos a mais do que a conta. Estacionei mal o carro. A Policia levou-o. Não tenho dinheiro para o ir levantar. O mais certo é ficar sem ele pois cada dia que passa apreendido é preciso pagar uma certa quantia e...

     O que é que isso tem a ver com a cicatriz e coisas que disse atrás? Bom, é o seguinte: com todos os problemas que tenho, são tantos que até tenho receio de vos contar, tive um sonho: e nesse sonho a Pécorinha estava com o amante! (Era o amante ou era o cunhado dela? Já não sei bem.) Havia para ali uma confusão de palavras, pessoas e imagens que eu não conseguia definir bem quem circulava, dançava ou fornicava no tal sonho que... havia todavia uma imagem que recordo nitidamente e me fez despertar com um suor frio e de medo! A minha companheira, que me tinha abandonado havia meses, conhecida nos meus livros por Maria Sómente; Libelinha; Mulherzinha; Pécorinha, etc., já não estava com amante nenhum e, pelo contrário, abraçava-me.

     Na nossa prolongada separação, a mulherzinha tinha-se comportado como uma santa, nenhum homem lhe tocara, nem tão pouco tinha ido aos bailes. Ela adorava-me e queria voltar a viver comigo... e eu, feliz e maravilhado murmurava: “Ah, amorzinho! Como é bom estar contigo! Como é bom ter-te de novo nos meus braços! Como...”

     Já viram isto!  Chamar amorzinho àquela “Pécorinha” babada por falsos e insosso elogios... Já viram bem esta merda? Depois de tudo o que ela me fizera, ali estava eu, no sonho, também eu... todo  baboso e encantado... como pode ser possível uma coisa destas? Desculpem o desabafo, mas às vezes... é tarde. Sinto-me cansado. Acho que estou com os copos. Vou tentar dormir.

25 février 2009

O HOMEM (2)

 

No palco da comédia humana existem sábios e insensatos, justos e ímpios. Penso que o homem, animal racional, não é, jamais, nem exclusivamente animal nem puramente racional; a ideia não se pode estremar completamente da sensação, como também esta se não pode degradar ao ponto de lhe serem negados quaisquer vislumbres de idealidade.

 

    As variadas investigações científicas, objectivas, sobre as origens do homem, revelam um animal superior sob o ângulo da evolução das espécies, mas também uma criatura dotada de uma dimensão suplementar à qual está definida uma sorte diferente. Esta tese é confirmada pela paleantropologia. A génese do homem permite conhecer as nossas modestas origens que nos mostram a fenomenal transformação dos antropoides em seres humanos, a extraordinária evolução da mão e a criação de fantásticos utensílios.

25 février 2009

O HOMEM (1)

                    O HOMEM

 

     À multidão de mortos e vivos, Montaigne lança um olhar sereno. Depois, referindo-se à natureza humana - esse tecido contraditório de lacunas, fraquezas e virtudes - e pergunta: não foi e é, esta, a condição humana tal como a natureza a criou? E Pascal, a quem a análise das imperfeições humanas levou a conclusões teológicas, responde: a dignidade e a grandeza do homem residem no pensamento!

A força que possuo devo-a a Deus; e penso que a minha ousadia e perseverança em escrever, não é sinónimo de grotesco ou de aberração. Por isso vou continuar a fazê-lo, mesmo reconhecendo que sabedoria ou conhecimento em vez de felicidade me trás lágrimas e desgosto. O princípio da sabedoria é o amor a Deus e a sua máxima é transmiti-la por todos os meios

 

       Quer animalizem o homem quer o idealizem, um certo   numero destas concepções trai manifestamente o carácter de classe que as leva a interpretar tendenciosamente e a adulterar os dados das ciências particulares. Foi assim que da sensacional descoberta de Darwin, confirmada pela antropologia e pela paleontologia, certos autores concluiram pela animalidade do homem, pela supremacia dos instintos e pela vontade de poder.

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21 février 2009

RIO ROVUMA

RIO ROVUMA

Qual fresco pintado por insígne artista, Diviso águas paradas que sei Deslizam a caminho do mar. Rio Rovuma, fronteira de paz e de sangue, Floresta escura de cor verdejante, Floresta paradisíaca que sei tenebrosa Nuvens cinzentas que sei azuladas Que diviso paradas mas rolam no céu!... Fresco, colorido quadro Por sensível artista idealizado... Há répteis asquerosos deslizando encobertos Por espessa vegetação. Há camaleões de tamanhos diversos Que mudam constantemente de cor E tanto acenam a dizer que sim como não!

Caro leitor, para que sorria, quero que saiba que neste instante em que refundo estes textos, são 23,55 horas do dia dez de Julho 2008. Estive todo o dia, desde as 6 horas neste buraco a reescrever este livro. Comi o resto de uma salada com dois dias e pão da mesma data. Tenho apenas 45 euros para comprar comida até ao fim do mês que vem longe. Estou só. Depois de pagar a renda do meu latíbulo, fico com oito euros por dia para viver, valor que me é facultado pela Assistência Social do reino da Bélgica. Espero um julgamento sobre a decisão de um Café que tinha e do qual, indevidamente, fui expulso pelas forças policiais do Reino.

     Fui casado, a Pécora deu-me dois filhos que posteriormente, depois de trinta e três anos, me roubou. Estou só, terrívelmente só. Ninguém me telefonou, ninguém. Apenas o tenho a si, por isso lhe conto, contos... da minha vida.  Não quero que tenha pena de mim. Ainda sou um “Comando” e sei como sobreviver. Por favor... Sorria!

Exactamente, há quarenta anos, inserido nas Forças Armadas Portuguesas, na então Província de Moçambique; em plena frente de guerra, escrevi:

DEZ DE JULHO

 

Querida e saudosa mãe: Faz hoje anos que por mim sofreste. Faz hoje anos que teu corpo, ainda jovem estremeceu. Faz hoje anos que tu permitiste que eu lançasse ao mundo o meu primeiro grito de angústia! Querida mãe: Por mim sofreste e choraste. Tiraste ao teu corpo o sangue que me alimentou. Os poucos momentos de felicidade que te ofereci São um grão de areia no oceano, comparado aos desgostos que te proporcionei. Mãe! Jamais te pagarei as dores que por mim passaste. Jamais te farei esquecer os dissabores  que por minha causa viveste. Ainda hoje, pensando em mim Sei que as lágrimas correm no teu rosto cansado, velhinho, mas tão bondoso... Sabes minha mãe: Eu pensava que já não sabia chorar. Vi coisas que me entristeceram e não chorei , Bateram-me sem razão e eu não chorei, Ferido em combate passei dores horríveis e Mesmo assim não chorei. Julguei até ter perdido o precioso dom  que é chorar! Hoje, todavia, choro! Chôro amargo é certo mas livre e natural! E sabes por quê minha mãe? Porque hoje faço anos. E desde manhã recordo nitidamente o teu rosto. Sim mãe. Choro por ti! Mas não fiques triste minha mãe pois eu choro de alegria Choro de alegria porque agora compreendo Melhor que nunca, que não há no mundo mãe com mais amor e carinho como tu! Mãe! Querida, bondosa e saudosa mãe! Perdoa-me. Perdoa a este filho distante que tanta vez te fez chorar!Não chores minha mãe. Não penses. Não fiques triste. Guarda um bocadinho de coragem e saude para que um dia tenhas ainda força para me abraçar! Não chores querida mãe. Eu hei-de voltar a teus braços. Eu hei-de voltar para ver teus olhos sorrir. Eu hei-de voltar porque assim o desejo do fundo do meu coração! Amo-te mãe! Recebe estas palavras do filho que deste ao mundo Do poeta que deste à vida Do soldado que deste a Portugal. Recebe, finalmente as primeiras palavras do teu filho-homem!

FILHOS DE PORTUGAL

Era Domingo. O Sol abrasador tostava os rostos. As nuvens no céu ao longe, possuiam cores disformes, porém, de uma maravilhosa beleza. As árvores, lindas em flor, transmitiam vitalidade e desejo de viver. Fardas impecáveis, rostos duros, envelhecidos e cansados, todavia ainda tão jovens, acompanhavam o camarada e amigo que dormindo o sono dos vencidos, ia ocupar a sua última morada, longe dos seus e tão distante da terra amiga que o viu nascer. Ó Moçambique querido, o teu solo é constantemente regado pelo sangue dos meus camaradas, por quê, Moçambique, por quê? Na entrada do Campo Santo, arma nervosamente  apertada contra o corpo em rígida posição de sentido,  vejo a urna chegar. É realidade. O seu sorriso sadio desapareceu para sempre. Seguro pelos condiscipulos, o caixão passou. Quase sem dar por isso, premi o gatilho da minha arma.  Uma, duas, três vezes. As detonações sucedem-se e os  meus camaradas secundam-me na última homenagem  ao companheiro desaparecido. Meu corpo é sacudido  fortemente. As detonações terminam. Em vários rostos as lágrimas, abundantes, rolam. Poucos, mas bastantes, todos os civis de Montepuez assistem ao final de mais um pequeno leão da Terra Mãe.   Morreu. Os leões também se abatem. Deu o seu esforço, o seu sangue, a sua vida pela Pátria. Tinha jurado defendê-la. Cumpriu. Sobre a urna que vai descer à cova, uma jovem deposita um ramo de flores brancas. Em seu rosto de linhas harmoniosas, uma lágrima. Ela não o conhecia pessoalmente, sabia apenas que o finado era um soldado de Portugal. Chora querida desconhecida, junta as tuas lágrimas ao sangue do meu camarada. Essa união será, talvez, a força da nossa razão. Meus camaradas, rostos secos, inexpressivos, voltam à base. A emoção findou. Há que esquecer pois a vida continua. Quando chegará a minha vez? Chegará? Se vier,  morrerei feliz, se souber que algures num cantinho qualquer do meu Portugal onde me destinarem repouso,  estará uma jovem, mesmo que para mim seja desconhecida,  mas de sangue igual ao meu, bem português, a derramar  uma lágrima de compreensão e carinho sobre a terra fria  do meu túmulo. Quero essa lágrima. Quero esse gesto trémulo de agradecimento. Quero esse ramo de flores brancas,  simples, belas e tão significativas do valor da mocidade que  morre para glória e engrandecimento do meu Portugal! Para ti, jovem desconhecida, vai o sincero agradecimento deste soldado, jovem-velho, que lamenta não possuir vocabulário mais eloquente para te agradecer e elogiar tão profundo gesto. Ele soube emudecer o ódio, a raiva e o desespero de um coração amargurado pela dúvida! Obrigado querida desconhecida! Obrigado Filhos de Portugal!

NO SILÊNCIO DA NOITE SOMBRIA

 

 

 

 

 

 

 

No silêncio da noite sombria as feras rugidos lançam, a preta na cabana treme, o soldado, cauteloso, avança.Tento simular a raiva, pois que em mim fervilha o ódio. Queria rir mas não posso. No silêncio da noite sombria não quero ser mais rebelde mas contra as minhas ideias não perco tempo a lutar. No silêncio da noite sombria não vale a pena chorar. Neste Portugal distante sinto o verme da loucura... por agora não sei nada. Apenas olho, escuto e calo! No silêncio da noite sombria está tudo tão distante, tudo tão longe e tão belo... penso e sofro em silêncio: é triste ser tão rebelde. No silêncio da noite sombria as árvores crescem com força, a água morna não presta e a cerveja cai-me mal. No silêncio da noite sombria ecoa o som do   tambor, guiado pelo instinto sigo pela  picada a  caminho do batuque! No silêncio da noite sombria, este preto sujo, pobre e tolo... olho com raiva e receio. Em seus olhos noto ódio quando para ele não olho! Olhando-me de frente, de olhos nos olhos... são cordeiros inocentes nesta noite negra e fria! No silêncio da noite sombria, em pleno batuque, o preto fica borracho com o vinho. Uns atrás dos  outros, mesmo colados, gritam em dialecto ao redor da fogueira. No silêncio da noite sombria não me compreendo bem: pobres pretos, rotos e descalços, por vezes  bem vestidos com roupas bizarras... que pensareis  vós de mim? Retrocedo. No silêncio da noite sombria penso um pouco entristecido: não quero ser mais rebelde.

 

 

 

 

 

No silêncio da noite sombria as botas pesam e chutam a areia. Sinto os pés cansados ao seguir pela picada. Na mão esquerda escondo o brilho do cigarro e na direita  escondo o brilho da faca de mato. Não sinto medo porém, por estes sítios, todo o cuidado é pouco. De repente, inesperadamente, vejo uma sombra que se move... Grito instintivamente: Hei!, você aí! Pare! A sombra foge. Corro o mais rápido possível. Alcanço-a. Hei moça! Porque fugiu você?... Não fala português? Raios me partam!... Porque mente? Agarro a roupa da preta. Um trapo. Puxo o trapo. A moça gira qual pião de brinquedo... Raios me matem! A moça está nua! Completamente nua!... Aparenta quinze anos. Com uma mão, tenta tapar os peitos pequeninos mas bem altivos. Na outra mão, tem três ou quatro cigarros, negros como a cor da sua pele... Agarro a moça, ao seu contacto o meu corpo jovem, viril,  estremece! No silêncio da noite sombria exalto-me e sinto desejos... A preta sorri para mim.Sinto uma  lágrima no rosto. No meu rosto! Pego no trapo, cubro a preta de quinze anos, viro-lhe as costas, aperto enraivecido a faca de  mato e, desorientado, sigo abstracto pela picada! África bela de mistério, no Silêncio da Noite Sombria.


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